Fazer acontecer não é fazer com que aconteça



Um acontecimento não é só para uns, nem é bem para todos, também não fica suspenso, nem tão pouco se cola aos gestos que o querem fixar. É totalmente alheio à nossa presença e pode mesmo deixar-nos escapar pelos poros da madeira ou pelas fissuras mínimas do metal, sem que nos desmaterializemos, sem nos ferir ou até mesmo sem nos marcar. Pode não chegar a dar por nós.

O que é um acontecimento quando não somos nós que acontecemos? O que podemos ser quando não acontecemos? Pode um acontecimento pedir para acontecer? O que acontece aos acontecimentos que deixaram de acontecer? Para onde vão? Há acontecimentos que se repetem? Há repetições que configuram acontecimentos por si só? Uma coisa vem a seguir à outra e assim sucessivamente, sem que nada pare por um instante? Será mesmo assim?

Não somos neutros. Incapazes de nos esconder, somos sempre afectados, como se não houvesse filtro solar ou screensaver que nos valesse de tamanha desfaçatez, de tamanho engenho, de tamanha separação continuada, explorada e expandida nos corpos de cada um. A nossa limitação nem é bem nossa, fica entre nós e as coisas do mundo, naquele lugar fora das cidades onde as curvas são mais apertadas e o ar é mais fino, como se não se precisasse de respirar. Não sendo nossa, a limitação é perspectiva e estabelece uma relação de escala entre corpos distintos. O corpo não acontece sozinho, precisa de outros, de outras provas de vida, de outros que se lhe comparem, de outros que o segurem e de outros que o deixem cair.

Diz-se que só tem estômago quem tem boca e que quem a tem em demasia acaba com ele dilatado e malcheiroso, a precisar de um murro que o reposicione, que lhe devolva forma, ainda que não sem dor. Um acontecimento não devolve, propriamente; esbanja, extravasa, sobrevaloriza e torna tudo inevitável, como o mel que escorre do rebordo do frasco, em demasia, ou a pomada que não cessa de cair, sob pressão, vinda do interior do tubo. Criar um acontecimento é, pois, atribuir uma forma, ainda que indefinida. Implica estar nas coisas do mundo e perder-lhes o respeito excessivo, sem as desfazer por completo. Fazer acontecer também é compor, dada a natureza simultaneamente construtiva e inesperada da expressão, quase contraditória e selvagem. É nesse lugar de produção sem limites que o acontecimento se dá, sem contemplações, sem cedências, sem permissão e, sobretudo, sem antes o ter sido como agora o é.

Miguel Ferrão,
Outubro de 2016









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